Por Vanessa Koetz
08
de março de 1917 (23 de fevereiro de 1917, segundo o Calendário
Juliano). Petrogrado, a maior cidade do Império Russo. Mulheres saem
às ruas para exigir o fim da guerra, exigir pão. E nenhum partido
ou movimento organizado pensara que o Dia da Mulher pudesse ser o dia
da revolução. Em vários pontos da cidade as bandeiras vermelhas
foram. Foi o começo de um processo revolucionário. Iniciava-se aí,
a Revolução de Fevereiro, há, exatos 100 anos.
A
história das grandes transformações modernas, em sua maioria, é
marcada por manifestações nos grandes centros urbanos, como foi a
fagulha da Revolução Russa, com as mulheres de Petrogrado. Nesses
momentos de irrupção, a população se apropria do espaço da rua,
e das praças, para lhes dar um novo significado. As ruas, espaços
quase que exclusivamente de circulação, e as praças, espaços de
lazer da cidade, passam a ser expressão imediata da política.
De
tempos em tempos, os movimentos sociais urbanos e rurais, geralmente
de uma forma mais amiúde nas grandes cidades, ocupam as praças e
avenidas centrais e realizam protestos. São ações políticas que,
apropriando-se da plenitude da palavra público, buscam a dimensão
da cidade, acreditando que suas ideias não podem ficar guardadas ou
reservadas para os espaços privados da vida social. As manifestações
fazem parte da modernidade. Diversos momentos significativos da
história foram contados e cantados a plenos pulmões nas praças das
cidades. Ontem e hoje, e porque não dizer amanhã, as ruas
tornaram--se espaços significativos para a realização de atos
públicos. (MAGALHÃES, 2013, p. 8).
A
tomada das ruas e das praças por mulheres, contudo, é ainda mais
significativa. A combinação de capitalismo, patriarcado e racismo
alija as mulheres da apropriação direta da cidade e a origem disso
está na divisão de gênero e raça/etnia do trabalho, em que homens
desempenham o trabalho produtivo e mulheres o trabalho reprodutivo.
Em
relação ao trabalho de produção social, dizemos sobre aquele cuja
produção se volta ao mercado. Já em relação aos trabalhos
reprodutivos, referem-se a todos aqueles essenciais à perpetuação
de uma sociedade – como os trabalhos ligados à saúde, à
educação, limpeza, ao cuidado de crianças e idosos – em que se
responsabiliza o núcleo familiar. Cabe destacar que essa divisão do
trabalho empurra especificamente as mulheres negras às formas mais
opressoras e discriminatórias deste trabalho - cuja expressão mais
gritante é a desvalorização das tarefas domésticas ainda
fortemente marcadas por uma associação à história estruturalmente
racista das sociedades capitalistas modernas.
A
questão é que esses trabalhos são desempenhados em espaços
distintos no capitalismo: trabalho produtivo pertence ao espaço
público, o espaço político por excelência; enquanto o trabalho
reprodutivo pertence ao espaço privado. Assim, essa construção
social de gênero acaba por dificultar ainda mais a tomada consciente
do espaço público da cidade pelas mulheres.
Mas,
não é só. As cidades, como reflexo de uma sociedade patriarcal,
capitalista e racista tem no seu cerne o privilégio ao masculino e
branco, o alijamento político das mulheres, a dependência
econômica, o controle dos corpos e da reprodução e a violência.
Não é à toa que as principais reivindicações feministas do
espaço urbano centram-se na garantia de iluminação pública, de
transporte de qualidade 24 horas, de creches e centros de educação
infantil, de criação, ampliação, formação e humanização no
atendimento das Delegacias da Mulher. É que as mulheres são
sujeitas ocultas nas/das cidades (GOUVEIA, 2005). Elas vivem e
transitam pelos espaços urbanos, sem ser prioridade do planejamento
e construção cotidiana das cidades.
E
isso as impediu de lutar por seus direitos? Diversos são os exemplos
de que estes não foram os obstáculos que paralisaram o levante de
mulheres por seus direitos. Cabe citar alguns: abolicionistas,
sufragistas, estadunidenses marchando pelo fim da Guerra no Vietnã,
pela igualdade (1970), por direitos reprodutivos (1980), egípcias na
Praça Tahir, pela Primavera Árabe, as canadenses que impulsionaram
a Slut Walk. No Brasil, são significativas a Marcha das Vadias,
Mulheres contra Cunha e a Marcha de Mulheres Negra, que deram grande
visibilidade ao movimento feminista. Em 2016, polonesas ocuparam as
ruas contra a criminalização do aborto. Ergueu-se o Ni Una Menos,
contra o feminicídio na Argentina e na América Latina. Mais de 1
milhão de mulheres marcharam contra Trump no dia de sua posse como
presidente dos Estados Unidos. E todas elas se manifestarão no 8M,
em 2018, na tentativa de construir um Paro Internacional, que
pretende ser uma data histórica.
Assim,
sofrer as opressões do patriarcado, capitalismo e racismo não
resignou as mulheres a se calarem diante do privilégio do outro em
detrimento do direito da outra. Saíram às ruas e foram lutar –
porque compreendem que direito é uma conquista e não uma dádiva.
Ressignificaram o espaço urbano, trouxeram a política para as ruas
e para as praças.
Em
todas essas expressões as mulheres impuseram um “choque de
desordem” ao urbano e deram novo sentido ao espaço público,
impondo-lhe a função direta da política e do exercício da
cidadania. Transformaram ruas e avenidas, antes espaços exclusivos
de circulação de mercadorias e pessoas, um verdadeiro espaço de
passagem, em espaço de vivência dos e das citadinas.
O
direito à cidade é a apropriação direta dos citadinos a fim de
superar a lógica do mercado e reafirmar a cidade como proveito para
seus habitantes, exprimindo-lhe um novo significado construído
coletivamente, a partir dos desígnios humanos e não do Capital.
Nesse sentido, o direito à cidade diz sobre a radicalização
democrática. Segundo o geógrafo britânico David Harvey (2013, p.
34),
O
direito inalienável à cidade repousa sobre a capacidade de forçar
a abertura de modo que o caldeirão de vida urbana possa ser o lugar
catalítico de onde novas concepções e configurações da vida
urbana podem ser pensadas e da qual novas e menos danosas concepções
de direitos possam ser construídas. O direito à cidade não é um
presente. Ele tem de ser tomado pelo movimento político.
Nesse
sentido, as manifestações de mulheres pelos seus direitos, tomando
ruas e praças dos grandes centros urbanos, são muito mais do que a
manifestação pelos direitos exclusivos das mulheres. Elas
representam uma aproximação ao direito à cidade, porque são a
apropriação política das mulheres sobre o espaço público, a elas
historicamente negado.
Nas
ruas e nas praças, de 1917 a 2018, é necessário enfatizar as
manifestações das mulheres nos espaços públicos das cidades. Isto
porque são a aproximação mais direta do direito à cidade ao tomar
para si a vivência das cidades e a elas inserirem um novo conteúdo:
o da política.
Viva
a luta das mulheres!
O
texto, escrito por Vanessa Koetz, integra a coletânea “Direito à
Cidade: uma visão por gênero”, publicada pelo Instituto
Brasileiro de Direito
Urbanístico, que reuniu em 2017 diversas vozes ativistas, com
diferentes vivências e trajetórias que participam da luta pelos
direitos das mulheres, trazendo elementos para a reflexão do direito
à cidade a partir do recorte de gênero feminino.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
GOUVEIA,
Taciana. Mulheres: sujeitos ocultos das/nas cidades. Mimeo, Recife,
2005.
HARVEY,
David. A Liberdade da Cidade: ―InII: HARVEY, D; MARICATO, E; et al.
Cidades
rebeldes, São Paulo, Boitempo, 2013, (pag. 27 a 34).
MAGALHÃES,
Fernando Rosa de. As manifestações no espaço público: a rua como
lugar da expressão política. 2013.
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